segunda-feira, 25 de junho de 2012

Conto "Correr Eguada" - Simões Lopes Neto

Se vancê fosse daquele tempo, eu calava-me, porque não lhe contaria novidade, mas vancê é um guri, perto de mim, que podia ser seu avô... Pois escuite. Tudo era aberto; as estâncias pegavam umas nas outras sem cerca nem tapumes; as divisas de cada uma estavam escritas nos papéis das sesmarias; e lá um que outro estancieiro é que metia marcos de pedra nas linhas, e isso mesmo quando aparecia algum piloto que fosse entendido do ofício e viesse bem apadrinhado. Vancê vê que desse jeito ninguém sabia bem o que era seu, de animalada. Marcava-se, assinalava-se o que se podia, de gado, mas mesmo assim, pouco; agora, o que tocava à bagualada, isso era quase reiúno... pertencia ao campo onde estava pastando. E mesmo nem tinha valor nenhum: égua baguala era só para tirar-se as loncas, alguma bota. Depois é que apareceram uns lamões e uns ingleses, melados, que compravam o cabelo: por isso às vezes se cerdeava; mas eles pagavam uma tuta e meia. Veja vancê: sempre a estrangeirada especulando cousas de que a gente nem fazia caso... Eguada xucra, potrada orelhana, isso, era imundície, por esses campos de Deus; miles e miles!... E bicho brabo pra se tropear, esse!... Barulhento, espantadiço, disparador e ligeiro, como trezentos diabos! Mas, como quera, era sempre um divertimento macanudo, uma volteada de baguais! Ah!... Não há nada como tomar mate e correr eguada! Aí para os meios de Quaraim, nos campos do major Jordão, entrei uma vez numa correria macota. Foi logo depois da guerra do Oribe. Havia como dez mil baguais entre éguas e potros orelhanos, cavalhada largada, reiúna e marcada, que toda virou haragana, nos pajonais. Os gados, que já eram mui ariscos, viviam numa bolandina com as disparadas da bagualada. Pro caso, diz que é o Negrinho do Pastoreio que faz as disparadas dos cavalares... Isso é uma história comprida... Um belo dia o major resolveu fazer uma limpa naquele bicharedo alçado. E preparou-se, com tempo. Desfrutou a novilhada que pode, no verão, arreglou as suas contas e mandou avisar e convidar o vizindário para correr a bagualada no veranico de maio, que era para agarrar o bicharedo rachando de gordo e aguaxado, pesadão e o tempo mais fresco para a cavalhada do serviço. Amigo! Quando foi aos três dias da lua nova a estância estava apinhada de gauchada. Como uns oitenta e tantos torenas, campeiraços destorcidos, domadores e boleadores de fama. Adelgaçava-se os fletes com água a meia costela, em qualquer lagoão, e à soga; cascos bem aparados, agarradeiras bem cavadas, endurecidas com uma untura de sebo de rim e carvão, aquentada com a ponta em brasa de um tição de goiabeira; cola curta, toso baixo. E a gauchada quase toda de em pêlo. Uns de bombacha, outros de chiripá; muitos sem chapéu, muitos de lenço na cabeça; tudo em mangas de camisa e faca atravessada. O mais maula levava pelo menos dois pares de bolas; três pares, isso era a rodo, e havia torena que chegava a levar cinco: um na mão, os outros na cintura. E tudo boleadeiras mui bem feitas, de pedra pequena; porque vancê sabe que o cavalar tem o osso mais quebradiço que a rês - e vai, se toma de mau jeito um bolaço pesado, aí no mais já temos um avariado. Pois é: as três-marias retovadas a preceito; e as sogas macias, pra não cortar; e levava-se também uns quantos ligares. - Vancê não sabe o que é um ligar? Não é só, não sr., o couro de terneirote pra fazer carona; é também uma tira de guasca, chata, assim duma meia braça, com um furo dum lado e uma meia ponta do outro. Conforme boleava um animal e ele caia, o campeiro chegava-se e passava-lhe o ligar em cima do garrão e apertava, acochava, à moda velha; hom!... era mesmo como botar uma liga de mulher, com perdão da comparação! Vancê compr'ende, não! Ficava o nervo do garrão, arrochado pelo ligar; então o gaúcho desenredava as boleadeiras e assinalava e mal isto, já o bagual se aprumava e levantava-se, bufando, puava, pra rufar..., mas qual! saía em três pernas!... E assim de seguida, em dois, três, oito ou mais, que cada corredor boleasse; esses não podiam mais disparar, ficavam perneteando no meio do campo! Então a gurizada, os piás, a relho, iam entropilhando os ligados, que depois cada dono separava pelo sinal feito. Era assim, que, conforme ia correndo a eguada, cada gaúcho ia boleando o bagual que mais lhe agradava; às vezes saíam dois a um mesmo animal: aí, o que primeiro lhe sentava as pedras, era o dono. Mas também, quanto porongo!... Quantas vezes, depois duma canseira, boleava-se e caía um potro lindaço, cogotudo e bem lançado, e ia-se ver, era um colmilhudo, com cada dente como uma estaca... velho como o cerro do Batovi; ou era um mancarrão de montaria, aporreado e cuerudo... outras vezes ainda... enfim, havia sempre embaçadelas! Mas, como ia dizendo: quando a gente estava toda a cavalo e pronta, o estancieiro ou o encarregado distribuía os ternos, que espalhavam-se a todos os rumos, sobre as costas e rinconadas, para fazer a tocada de lá desses fundos. E daí a pouco já se levantavam os primeiros rumores... A bagualada estranhava aqueles movimentos; os colhudos começavam a relinchar, ajuntando, pastorejando as manadas; os entropilhados, farejando, entreparavam-se, arpistas; outras pandilhas, de cola alçada, iam num trotão dançado, bufando... e já cerravam numa correria em redondo e depois riscavam, campo fora... Lá adiante, o mesmo barulho; noutro ponto, igual; dum rindo, numa trepada de coxilha, numa descida de canhada, rufando duma restinga, os lotes de eguariços iam se encontrando, entreverando-se; os campeiros vinham chegando e a gritos, a cachorro, a tiro, ia-se tocando a bagualada de cada querência; de todos os lados cruzava-se a contradança, que se encaminhava sobre uma linha já combinada; e aos poucos ia crescendo o rodeio movediço, que engrossava, redemoinhava, espirrava, tornava a embolar-se... e de repente fazia cabeça, fazia ponta, e todo disparava, fazendo tremer a terra, roncando no ar, como uma trovoada. Aí a gente entrava a manguear, aos dois lados, e então é que começava, de verdade, o divertimento! Arrematava-se três, quatro, cinco fletes; corria-se sem parar, seis, dez, doze léguas... e no fim estava-se folheiro!... Barbaridade! Nem há nada como tomar mate e correr eguada! Amigo! Aquele novelo não se desmanchava mais; ao contrário, o que ia topando pela frente ou aos lados, de eguada, também corria e atirava-se, incorporando-se; na culatra ia ficando uma estiva de potrilhos, de flacos, de aplastados, dos que rodavam, dos que se quebravam e até dos que morriam pisoteados por aquela massa cerrada de cascos. E em cancha direita ou fazendo voltas largas, não se respeitava sanga, banhado, tacuru, panela de caranguejo, nem buraco de tuco-tuco; ia-se acamando as macegas, pisoteando cardais, esmigalhando as manchas de trevo, e ia-se sempre a meia rédea. Aí é que era o lindo! Os fletes montados, alevianados, corriam, alçados no freio; os tiros de bolas cruzavam-se nos ares... e aquilo era largar as três-marias sobre a paleta do escolhido e o bagual logo rodava, no enleio das sogas. O gaúcho, apeava, ligava, tirava as boleadeiras e já se bancava de novo pra nova nombrada. Isto quando era por divertir. Quando era para tropa, o melhor era reiunar os boleados; isso era ligeiro: com um talho de faca, por detrás, na raiz da orelha, esta caía pra diante, sobre o olho; o sangue também ajudava, porque escorria e se empastava nas clinas; e podia ser potro cru e malevaço, que ali no mais dava o cacho; podia fazer-se dele sinuelo. Quando era para limpeza, então tocava-se a eguada sobre um apertado qualquer, sobre uma sanga bem funda, grota, manantial, sumidouro, e atirava-se aí pra dentro, para destroçar, para acabar, atirava-se aí para dentro toda a bagualada, que, do lance em que vinha, toda se afundava, amontoava, esmagava e morria, sem poder recuar, perdida pela sua própria brabeza, empurrada pelas pechadas dos que vinham, sarapantados, tocados de trás!... E o resto que se desguaritava e que se podia ainda apanhar a laço e bolas, esse, degolava-se. Dessa feita, nos campos do major Jordão matamos pra mais de seis mil baguais. E cada gaúcho, na despedida, foi tocando por diante a sua tropilhita nova. Hoje... onde é que se faz disso? É verdade que há muita cousa boa, isso é verdade... mas ainda não há nada, como antigamente, tomar mate e correr eguada... Xô-mico!... Vancê veja... eu até choro!... Ah! tempo!... http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm

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Animação do conto "Entre Santos" de Machado de Assis